Um cão em minha vida


Estava eu de volta para casa, após uma longa jornada de trabalho. Era noite. Estacionei o automóvel em frente à minha residência, por não prover de uma garagem. A rua era tranquila. O tráfego era sereno, dificilmente se via um veículo passar por ali.

No exato momento em que eu entrava em casa,  deparei-me com algo estranho na enseada da residência onde havia um muro, e logo percebi algo volumoso pela lateral de fora. O estranho corpo se comprimia entre o ângulo projetados pelas paredes do muro Parecia uma rodilha , porém em proporções maiores. Uma sombra vinda da casa vizinha impedia que eu pudesse enxergar aquela figura imóvel e quase imperceptível ao meio à escuridão. Julguei que se tratava de uma criança abandonada, colocada diante da minha morada. Observei ao meu redor; apenas alguns meninos brincavam no passeio. Retirei, então, o celular do bolso. Direcionei a luz do  aparelho sobre aquele corpo e fui me aproximando.

Para a minha surpresa, a figura se locomoveu, lançando seu olhar sobre mim. Eram como dois lumes, causando-me arrepios. No mesmo instante soou um gemido e a figura ergueu-se esbaforida e pôs-se a correr.

Ri de mim mesmo, ao descobrir que a estranha rodilha se tratava na verdade de um cão vira-lata. Parecia assustado e sem rumo. De longe, ainda pude avistá-lo a dobrar a esquina.

Entrei em casa e me estiquei no sofá. Morava só. E nunca questionei  se o fato de estar sozinho representava um bem ou um mal. Como funcionário público,. trabalhava substancialmente e não tinha tempo para refletir a vida de um solitário.

Valquíria, a minha auxiliar doméstica, já havia partido. Em geral era assim: antes da minha chegada, ela partia. Nossa comunicação era parcial. Usávamos bilhetinhos ou telefonemas. Os bilhetes serviam como alertas, exemplo " O jantar está na geladeira" ou algo relacionado.

Estava tão exausto que nem jantar eu queria, naquela noite. Tomei um banho quente para relaxar e fui dormir.

Dia seguinte, saí mais cedo para o trabalho. Entrei em meu carro que estava estacionado em frente à residência. Antes de seguir, observei ao redor do muro; havia apenas lixo trazido pelo vento. "São uns inimigos do meio ambiente", pensei em voz alta.

O dia sempre passava rápido quando  me sentia satisfeito. Naquele dia, não foi diferente. E novamente eu estava de volta para o meu pequenino lar.. Como era de costume, estacionei meu veículo, atravessei a rua. E quando estava para abrir o portão, percebi algo tocar em minhas pernas. Era o cão vira-lata da noite anterior. desta vez eu pude observá-lo: tinha o tamanho médio para um cão vagabundo; seus pelos curtos se limitavam entre o branco natural e o encardido da sujeira. Esquelético, pois era possível contarcada osso do seu corpo. Uma de suas orelhas era caída. Cheirava mal. Logo que me viu, abanou a cauda e caminhou em minha direção. Seu olhar impressionava: era tímido como os olhos de uma criança.

Refiz minha postura de cidadão indignado: com a questão do lixo acumulado e com o número de cães jogados nas ruas.

Bati firme com o pé direito sobre o chão, na tentativa de afastá-lo de mim. E foi o que aconteceu: o animal pôs-se a correr como uma gazela assustada.

Já dentro de casa, corri para o banheiro. Tive a sensação de que meu corpo estava impregnado daquele odor de cão. Levei alguns minutos ensaboando o meu corpo. Que asco! Senti, enfim, um enorme alívio, depois do banho. Segui até a cozinha. O bilhetinho da Valquíria já estava à minha espera, colado no ímã da geladeira, informando o  que eu já era de rotina: "O jantar está dentro da geladeira."

Depois da refeição, liguei a TV para relaxar um pouco e chamar o sono. Mas logo, apoderou-se de mim uma expressa perspectiva de vida, algo inevitável. A opção que fiz de estar sozinho, ou até mesmo sem a companhia de animais. Não desejava tê-los em casa, pelo trabalho que causavam. E cães? Nem pensar. Não os odiava, embora sentisse uma repúdia só em imaginar os pêlos soltos nos quartos.

De antemão, pensei que o encontro casual com aquele cão vagabundo ficasse apenas no acaso. Entretanto, todo o início da noite, quando retornava de mais uma jornada de trabalho, o vira-lata encardido estava em minha porta. A princípio , o cachorro se intimidava com a minha presença, mas com o passar do tempo, ele começou a se aproximar mais de mim, sentava em minha frente abanando a cauda e a sorrir com seus latidos. O animal nem imaginava o quanto aquilo me irritava. Por fim, passei a me acostumar com a recepção, porém mantendo certa distância e limitando as intimidades.

Um dia, encontrei ao lado do muro de casa e dentro dele haviam restos de alimento. logo imaginei que alguém estava dando de comer àquele cão vadio na minha porta, por esta comodidade é que ele não saía dali.

Certo dia encontrei-me com a Valquíria na saída do portão e comentei sobre o tal animal. Para o meu espanto, a assistente doméstica estava bem familiarizada com aquele vira-latinhas de lixo e o chamava de "Tadinho". - Tadinho: substantivo hipocorístico de coitado - E não concordei com a boa ação em que ela praticara em alimentá-lo em frente a minha casa. Deixei bem explícito para não colocar nenhum pratinho de comida para aquele cachorro na enseada da minha moradia.

Certamente Valquíria compreendera  às minhas ordens, permanecendo em silêncio, e em silêncio, ela partiu.
Reconheci a minha rispidez, embora me sentisse decepcionado. A questão agora  era que aquele cão me julgava ser o seu dono.

Nos últimos dias, ele chegava com a  maior inocência e insistia em acompanhar-me até ao interior do recinto. Era eu abrir a porta, e o cão esquelético, agora não tão esquelético assim, pretendia invadir. Porém, antes que ele penetrasse a casa a dentro, apanhei uma pedra ao chão e ameacei atirá-la no vira-lata. Evidente que só foi para assustá-lo. Às vezes olvidava da minha boa conduta.

Numa manhã de segunda-feira chovia muito. Sem dúvida, era um temporal. Entretanto eu precisava enfrentar aquele aguaceiro para ir ao trabalho. Corri até ao carro estacionado em frente  e segui. A chuva  insistia e não estava para  tréguas. A trajetória foi difícil, contudo consegui chegar a empresa a tempo.

Custou-me iniciar por imediato  a minha função. Senti um enorme vazio, sem alguma razão aparente. Cada minuto parecia uma eternidade. E ansiava logo voltar para casa.

E finalmente chegara o momento tão desejado. A chuva continuava a caminho de casa,  no entanto em proporções menores. Tadinho já me aguardava na porta de casa e estava todo ensopado de água da chuva. Estava sentado e ao me aproximar, levantou-se com um gemido, sacudindo o rabo. Ergueu seu olhar  carente sobre mim a espera de um convite para poder entrar em minha morada. Tive uma das mais inesperadas reações: fui implacável, frívolo. Gesticulei e gritei para o Tadinho:

 - Procure um lugar para ficar, seu vira-lata e sai da minha porta de uma vez - e entrei.

Inspirei fundo, embora não fosse por alívio. De imediato, senti um peso, uma angústia. Era uma dor. Talvez a dor do remorso. Corri para abrir a porta; olhei para fora e comecei a chamar Tadinho. Mas ele não apareceu; não estava mais por ali. De certa forma, senti um leve conforto por entender que o cachorro havia procurado um abrigo para se proteger da chuva.

Ao contrário daquela segunda-feira, o dia seguinte foi de sol. O céu presenteava à população com o seu límpido azul. A brisa da manhã ainda estava fresca. Aproveitei para ir ao trabalho de ônibus. Uma alternativa para reduzir um pouco, eu disse um pouco, o congestionamento do trânsito.

Dentro do coletivo, eu pensava em meu trabalho , ao mesmo tempo no Tadinho. Tolice minha, ao imaginar que poderia aliviar minha tensão no cotidiano, trazendo aos meus pensamentos um fétido cão vira-lata. Ou seria ao contrário?

O salário de um funcionário público certamente não era compensador, mas as atividades faziam um enorme bem à  mente. Diante destas jornadas eu esquecia das mágoas, das minhas frustrações, eu esquecia da minha solidão.Algo errado, porém, acontecia comigo. Sentia um aperto no peito. Desejava logo voltar para casa.

E finalmente o meu horário de volta para casa chegara. E chegara com um sabor de alegria, misturada com desejo.. Lá estava eu em frente ao portão. Desta vez me surpreendi com a ausência do cão moribundo. Dei uma espiada ao lado do muro. Estava escuro. Iluminei com o celular a lateral onde o Tadinho costumava dormir. Mas ele não estava lá. "Será que ele já tinha um dono? Será que ele morreu de inanição?" Minha imaginação tomava meu cérebro de maneira angustiante.

Dentro do recinto, segui direto para o banheiro. Lá, comecei a meditar. Seria dramático demais acreditar que um simples cão, aliás, um molambo de cachorro fedido pudesse me fazer refletir à minha arrogância, o tanto quanto era indiferente, egoísta. Em resumo, eu era um desumano solitário.

Os dias se passavam rápidos. Tadinho nunca mais foi visto. Nem Valquíria sabia informar o paradeiro do cão.

Eu não admitia que aquele cão pudesse abalar toda a minha estrutura de homem.

Dezembro começou. E a cidade começara a se organizar para o Natal, Navidad, Christmas, Natale, Noel, Weihnachten ... Natal em todas as línguas. Bom momento para refletir. Aliás, sempre gostei desse clima natalino;  luzes, brilhos, mesa farta abraços. felicitações. A adversidade, entretanto, do mês seguinte passamos sempre por conseqüências: dívidas, quilinhos a mais,  intrigas. Nada convencional.

Escolhi um final de semana para armar a minha árvore. A iluminação da parte externa ficou a cargo da Valquíria. Era uma sensação prazerosa ver cada bola de natal dependurada,  com os lacinhos de fita vermelha. Dentro de mim, o espírito natalino significava alegria, celebração, ceia com peru, sem me importar com os gastos.

A árvore de natal estava quase terminada, quando um latido me chamou a atenção. Corri para abrir a porta de entrada e em minha frente estava o cão vira-lata, o Tadinho. Estiquei meu braço direito para tocá-lo, no entanto contive-me. O cachorro estava mais encardido, cheio de pulgas seu odor era insuportável, mas seu olhar era de meiguice, de alegria ao me ver. Com um esforço sobrenatural acariciei sua cabeça. Valquíria me sorriu aplaudindo. Não tive outra escolha: pedi que a minha ajudante desse um banho bem dado no Tadinho e o alimentasse. Ela conduziu  o animal com satisfação, embora fizesse o um ar de asco.

Ao cair da noite senti vontade de caminhar um pouco e levei o Tadinho para me acompanhar. Incrível como a sua aparência mudara. Seus pêlos estavam brancos, perfumados, macios.

- Por onde você andou , seu danado? - Naquele momento compreendi que foi a sua falta que me causara tanto anseio irreprimível. Este anseio significava falta de algo que preenchesse a minha solidão, que me enchesse de ânimo, que me amasse sem exigir nada em troca. Acredito que este mérito eu obtive com aquele cão. Fui arrogante, indiferente com ele. Eu não merecia tanto. Agora ele estava do meu lado, pedindo apenas um pouco da minha atenção.

Continuei caminhando pela calma e pequena rua de onde eu morava. De repente, escutei uma voz por trás de mim. Um jovem robusto parou à minha frente. Ele trajava bermudão, camiseta e usava um boné preto A minha alegria se desmanchara por completo. Notei que se tratava de um bandido . Ele queria dinheiro. porém eu não tinha levado nenhuma quantia, além do meu celular. O assaltante não acreditou  e ameaçava a atirar se eu não lhe entregasse . Eu jurei para ele que meus bolsos estavam vazios, mas ofereci o meu celular. O facínora rancou de minhas mãos o telefone móvel, porém não se contentava. E continuou a fazer ameaças com a arma na minha direção.  Quanto mais eu olhava para o bandido e para o seu revólver em punho o meu desejo de viver crescia em torno de uma incerteza.
Tentei acalmá-lo falando de Deus , tentativa  em vão. O bandido parecia-me desnorteado, drogado ou qualquer conduta aparente.  Prostava-se em minha frente  a pontar sua arma  em minha direção. Olhei  para os lados e não havia ninguém, nem um transeunte. Apenas o Tadinho sentado  atrás de mim Escutei quando ele acionou o gatilho.  Não tive mais dúvidas: aquele era o meu fim.

Como por detrás das nuvens, meu cachorro surge de um salto e abocanha o punho do qual o criminoso segurava o projétil . Permaneci estático por alguns segundos e diante de mim observei o confronto entre o bandido e o Tadinho com sua coragem que não desistia de enfrentar a impetuosidade daquele rapaz. Embora fosse  debilitado fisicamente, o cão ainda possuia forças em suas mandíbulas.  A mão do bandido começara a dilacerar. O sangue lhe escorria e pigava pelo asfalto. Curiosos atraídos com os rosnados do Tadinho surgiram , mas nada fizeram para deter o assaltante. Por um impulso recorri para ajudar o meu cachorro, porque ele era mesmo o meu herói. Segurei o bandido pelo punho para puxar sua arma.

Mesmo ferido  o crápula não oferecia resistência. Um outro homem que estava a observar o confronto logo se dispôs à minha defesa. Agora eram três contra o gatuno, verme, vagabundo,  bandoleiro, ladrão!

Um estampido ecoou e o sangue jorrou. E logo um corpo caía sobre o calçadão. Daí não me lembro mais de nada.

Porém de uma coisa tenho certeza: a vida nos traz muitas provas, as quais não sabemos decifrá-las, mas aprendemos com ela. E o amor é o combustível desta vida, é nosso sustento, é a soma de todas as definições, sobretudo do amor. De certa forma, recebi esta lição daquele cão heroi.

Talvez o Tadinho fosse eu mesmo, por estar aqui e o meu cachorro do outro lado, mas que permanece ao mesmo tempo bem próximo de mim. Aqui é tão frio, contudo Tadinho me aquece. Como sempre, em todas as tardes, ele vem me visitar e fica por longas horas ao lado do meu túmulo, zelando com todo o seu amor de cão que nunca abandona o  dono, nem depois da morte.

Fim

Comentários

  1. A vida nos trás muitas provas as quais não sabemos decifrá-las, aprendemos, no entanto, com emoção, com a dor, com cada irmão, enfim com nós mesmos. Esta é a verdadeira arte de viver espiritualmente.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas